Hoje é dia de São Jorge. A data, em si, só vai acontecer hoje. Nunca mais haverá um 23 de abril de 2021.
Quanto a São Jorge, saravá ao guerreiro nascido na Capadócia. Noutras religiões não representa nada. Pense na Grécia de Sócrates ou no Egito de Cleópatra. Pense nas denominações neopentecostais ou nas tribos africanas. Tire suas conclusões.
Eu tampouco tenho religião, mas meu nome tem Jorge na certidão e, mais do que isso, São Jorge deixou marcas indeléveis na minha memória de infância.
Se tem uma coisa que toda criança aprende é a ter fé: fé na mãe, fé no pai, nos avós, nos professores, alguns amigos e alguns seres invisíveis, um que desce pela chaminé, outro que vem num cavalo branco com sua lança protetora.
Fé e memória são duas coisas universais, pois tanto Sócrates como Cleópatra tinham seu repertório de fé e de memórias. Afinal, o ser humano possui um cérebro e nasce no meio de uma sociedade, de uma cultura, de uma família, seja quem for, onde for, quando for.
O que é universal no ser humano atravessa o tempo: fé, memórias, saudades, preconceitos, medos, alegrias, tristezas, esperança, dentre outros sentimentos universais independentemente da sociedade, da cultura, da família, do passado, do futuro.
Dentre os sentimentos universais que você e eu, nossos avós e amigos, Platão, Einstein e todo mundo temos em comum, eu vou escolher a saudade.
A saudade é um sentimento conhecido dos adolescentes, adultos e idosos, por conta do acúmulo de vivências. Mas tem um tipo de situação bastante inusitada. Se é universal não sei dizer. Eu tenho saudades de mim mesmo. Você já sentiu saudades de você?
Hoje eu senti saudades do tempo em que eu acreditava em São Jorge. Eu era um menino que usava botas ortopédicas e um óculos-fundo-de-garrafa. Compartilhamos o mesmo nome: São Jorge e Farlley Jorge. Mas eu não tenho como comparar-me a ele. Ele é famoso há séculos, eu sou famoso pra minha mãe que já está com quase oitenta anos. Somos Jorges com diferenças bem guardadas entre si.
Eu tinha uma estátua de São Jorge até pouco tempo atrás, mas minha esposa deu-a para um vizinho. Apesar de eu não ter religião, eu sou religioso. Eu lembro de muitas datas, inclusive as dos santos. Fiquei um pouco sentido quando não vi mais a estátua de São Jorge no lugar onde estava. Agora está na casa do vizinho. Duvido que vá acender uma vela e um copo d’água para o homem da Capadócia. Hoje é dia 23 de abril.
Ao dar o meu São Jorge pro vizinho minha esposa, de origem judaica, não devia fazer ideia (assumo o mea-culpa), que eu gostava de olhar para a estátua e lembrar da voz da minha avó de criação, uma negra do Maranhão que me ensinou a ter fé, ter medo de trovão e pavor das palmadas que ela me dava na palma da mão se eu errasse a tabuada. Nunca consegui desvincular a estátua de São Jorge da minha avó.
Quando não vi mais estátua foi como se minhas lembranças de infância tivessem voado da gaiola do tempo cuja chave eu sempre guardei. Sem minha avó (falecida há 41 anos) e sem o meu São Jorge, resta a religiosidade da lembrança, não apenas de mais um 23 de abril, mas da criança que fui decorando a tabuada e pedindo a ajuda do santo guerreiro em seu cavalo branco, para que me livrasse das palmadas da Vó Lu quando me perguntasse, na hora do almoço, quanto era sete vezes nove, oito vezes cinco, quatro vezes oito. Quando eu acertava todas as perguntas, eu acendia uma vela às seis da tarde com um copo d’água aos pés da estátua dele.
Hoje é 23 de abril. Tenho velas em casa e uma certa gratidão. Esse sentimento devia ser universal.
Deus te guarde, Vó Lu. Um dia a gente vai se rever.
Salve São Jorge, onde quer que você esteja na casa do vizinho.