Ela entrou na emergência do hospital, tropeçou no meu pé, seguiu até o balcão sem parar de falar ao celular.

A recepcionista informou que seu pai foi levado para a cirurgia. Colocou o celular no ouvido outra vez, disse que esperaria ali e desligou.

Eu estava ali porque minha mãe também estava na sala de cirurgia.

A mulher do celular sentou-se, abriu sua bolsa e tirou um cigarro. Lembrou-se que ali não era lugar. Levantou-se e foi fumar no lado de fora.

Ela parou de fumar dois anos depois daquele tropeço. Hoje estávamos relembrando nosso encontro naquela sala de espera. Seu pai não resistiu à cirurgia, minha mãe também não. Soubemos disso quase ao mesmo tempo. Paula saiu do balcão chorando e sentou-se ao meu lado com o rosto entre as mãos. Ela disse que não se lembra, mas eu tenho certeza que foi ela que deitou a cabeça em meu ombro para chorar. Enquanto ela chorava chamaram o meu nome no balcão. Pedi licença. “Com licença, estão me chamando”, e ela retirou a cabeça do meu ombro, levantou-se e saiu. No balcão eu recebia a notícia da morte de minha mãe. Eu não tinha tanta esperança. Minha mãe descansou.

No dia seguinte Paula e eu nos encontramos noutro setor do hospital, no local onde os parentes cumprem a burocracia com assinaturas de papéis. Paula estava sozinha. Era filha única do falecido que era viúvo. Eu estava sozinho, filho único também. Não conheci meu pai.

Isso faz quinze anos. Temos a mesma idade, quarenta e cinco anos.

Hoje estamos aqui no mesmo hospital. Ela e eu aguardamos o resultado da mamografia. Estar aqui nos fez lembrar de como nos conhecemos.

Agora que chegamos em casa ela não quer falar do resultado do exame. Ao sair do carro, ela me pediu para ajudá-la a organizar suas coisas para doar. Livros, bijuterias, alguns calçados, casacos. Eu não queria fazer aquilo, mas eu conheço a Paula. Ela estava me pedindo uma prova de coragem, uma prova de amizade, um prova de resistência psicológica e, no entender dela, uma prova de amor.

Eu nunca fui de questioná-la. Comecei a retirar os livros dela da estante e separá-los em categorias. Os romances ela certamente doará para a Glorinha; os livros de sociologia vão para aquele chato do Alberto; as partituras de violino ela é capaz de doar ao ex-namorado e, meu Deus, o que ela vai fazer com aquela mala amarela lá no quintal?

Cheiro de fumaça. Espio pela janela da cozinha. As cartas guardadas. Uma por uma nas chamas. Eu prefiro observar. Eu sei que a Paula não faz mais aquelas coisas de se autoflagelar, furar partes de seu corpo com alfinetes… isso faz algum tempo. O pior já passou. Uma vez quebrou um copo e fez um risco com um caco de vidro na palma da mão. A Paula não vai se jogar naquela fogueira. Vou ficar de olho.



Ele conta que tropecei no pé dele quando entrei na emergência do hospital. Dizem que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Então foi isso. Sem saber tropecei no pé do Maurício e ganhei um companheiro de vida. Coisas de Deus. Eu já tinha me convencido de nunca me casar. Mas Deus sabe o que faz, me empurrou pra tropeçar naquele pé. Que sorte.

A recepcionista disse que meu pai já estava em cirurgia. Depois veio a notícia: não resistiu. De repente eu estava chorando sentada no ombro de alguém.

Um tropeço que não percebi, um ombro que não sei de quem era, um homem que nunca me questionou, um homem enviado dos céus.

Sempre fui sozinha. Minha cabeça vive focada nos minutos, ou melhor, nos segundos de cada instante. Eu nunca fui de guardar datas, nomes, mas sei identificar as pessoas que julgam as outras. Então preferia ficar sozinha. Aliás, o Maurício foi exceção. Quinze anos morando juntos, quinze anos de um ombro amigo.

Eu parei de fumar. Mas o estrago já estava feito.

Eu to vendo o Maurício me espiando pela janela da cozinha. Ele tem medo de eu fazer alguma coisa além de queimar as cartas do meu ex-namorado. Ninguém precisa ler as cartas do primeiro amor de uma pessoa. Alguém mais inteligente deduziria quando comecei a fumar, com quem comecei a fumar e por que estou diante dessa fogueira.

Vou queimar essa mala também. O Maurício deve estar com o coração a mil.

Vou entrar e chamá-lo para tomar um banho comigo. Ele gosta de passar xampu em mim, massagear meus cabelos com os dedos, passear o sabonete no meu corpo e fazer uma nuvem de espuma na palma da mão. Aí ele coloca a espuma no alto da minha cabeça e sorri.

Quando eu fechar meus olhos, irei com aquele sorriso.

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