No facebook do meu amigo de infância tem foto na Disney, foto dos filhos, foto na praia do Rio de Janeiro, foto de lasanha, sushi e caipirinha, fotos dos pais (que saudade), fotos das três irmãs (ai ai…), foto com o sambista Marcelo Guimarães, foto com o lateral esquerdo do fluminense e da seleção brasileira da época dos anos 70, Marco Antonio, foto do casamento dele com a Márcia, foto na Sapucaí, foto na Europa, e se tivessem três planetas como o nosso ele daria conta de viajar pelos três, comer os pratos de lá, dançar as músicas de lá e, claro, levaria as piadas de um planeta ao outro, porque de uma coisa esse meu amigo de infância entende: saber viver.

Elson Campos Filho (empresário) e Marco Antonio (lateral esquerdo do fluzão e da seleção, nos anos 70. Foto tirada em 2015.
Elson Campos Filho (empresário) e Marco Antonio (lateral esquerdo do fluzão e da seleção, nos anos 70. Foto tirada em 2015.

Quando a gente era moleque lá na rua Francisco Bacuri, tinha o Miúdo, tinha o Dinho, tinha o Loirinho e tinha o Cosme. O avô do Cosme era uma figura mítica, uma lenda viva, um andarilho. A rua parava quando ele aparecia, vindo de algum lugar. Certa vez, eu me lembro de ficar com o pé preso em cima da bola. O jogo parou e umas vozes que pareciam sair das janelas das casas diziam “lá vem o Profeta”, “olha lá o Seu Gentileza”. Ele surgia do outro lado da Bacuri, depois da Estevão de Carvalho que a cortava transversalmente. Vinha em nossa direção. A gente jogava bola naquele trecho da rua onde moravam o meu amigo de infância. Um gol era montado com latas na frente da casa do Cosme (neto do “Seu Gentileza”) e o outro gol era montado em frente à casa do “loirinho” que ficava defronte à casa do “Miúdo” e do “Dinho”. Ali era uma casa lotada de crianças e mulheres, eu não sabia quem era mãe de quem, não entendia se o Dinho era irmão do Míudo, e tinha uma penca de outras crianças e outras mulheres, todos negros e todos sorridentes, sempre sorridentes, exceto a mulher mais gorda, essa sempre chamava as crianças aos berros.

Nos anos 60 houve um grande incêndio no Rio de Janeiro. Eu não vi. Eu estava me preparando para nascer em 1963, lá no Acre. Pois bem. Durante aquele incêndio em Niterói, um homem surgiu para consolar os familiares das vítimas daquela tragédia. O incêndio aconteceu no “Gran Circus Norte-Americano”, em dezembro de 1961, no qual morreram mais de 500 pessoas, a maioria delas eram crianças. Durante o Natal daquele ano, Datrino disse ter ouvido “vozes astrais”. As vozes o guiaram a ir até o terreno do circo incendiado para plantar um jardim sobre as cinzas. A molecada lá da Bacuri não sabia quem era José Datrino, nem a população carioca. Mas todos sabiam quem era o “Profeta Gentileza”, autor da frase “gentileza gera gentileza”.

Ele se tornou conhecido pelo gesto de plantar um jardim sobre as cinzas dos mortos naquele incêndio. Dali em diante passou a carregar um estandarte com algumas mensagens que ele pintava à mão. Todo o Rio de Janeiro o chamava de “Profeta Gentileza”.

Como ele era avô do Cosme, era fácil a gente pegar na mão dele. Toda a criançada ficava ao redor dele. Um dia ele pegou na minha mão. Eu nunca me achei importante, mas naquele dia eu me senti importante. A mão dele era grande e tinha um calor. Ele me olhava com um sorriso mágico. Eu pensei que ia voar naquele dia. A bola que estava debaixo do meu pé rolou pro meio-fio.

Quando fui servir o exército, aos 19 anos, eu ia de trem ou de ônibus. Quando eu ia de ônibus eu via as frases do “Seu Gentileza” pintadas nos pilares do viaduto que ficava em frente à rodoviária Novo Rio. Eu estava com aquele cabelo reco, fardado dentro de um ônibus que passava ali antes das seis horas da matina. Eu era o primeiro a chegar no quartel. Eu lia as frases e me lembrava dos tempos de pelada na Bacuri, lembrava da entrada triunfal do “Seu Gentileza”, do jogo parado até ele passar com um sorriso e o estandarte na mão. Eu me lembro da voz dele. E uma coisa que sempre levo dentro de mim é a voz das pessoas. O som da voz. E é isso que me entristece muito quando alguém morre, porque nunca mais a gente vai ouvir a voz das pessoas.

Por exemplo, a voz do Elson Campos. Eu sinto falta de ouvir a voz desse homem que mudou minha vida. Mas ela está bem aqui dentro do meu peito. Ouço sua voz porque minha memória não deixou evaporar. Ouço o som da gargalhada porque ele gostava de contar piadas e meu amigo de infância, filho dele, seguiu no mesmo caminho. O cara que sabe viver, o cara que dá conta de alegrar três planetas. Mas o pai dele, ah aquele transformou minha vida. Tem um cena que mora na minha memória.

Certa noite, a rua Francisco Bacuri dormia. O silêncio era enorme. Nenhum cachorro da vizinhança latia. Aquele homem, Elson Campos, ficou na calçada comigo na hora de eu ir embora. Foi a primeira vez que eu não quis ir embora, mas era tarde. Dona Lêda dormia, Darlene dormia, Dayse dormia, Elsinho dormia e a menina do shortinho azul dormia, acho que estava na hora de eu ir embora. Mas o patriarca mineiro, de voz potente, naquela noite ele sussurrava comigo. Estávamos na calçada debaixo do céu estrelado. Eu queria ser astrônomo, já tinha tudo planejado, a universidade lá do Fundão tinha o curso, quando ele me perguntou “quantas estrelas você acha que tem por aí”? Ele me perguntou olhando pro céu e eu estava pensando em outra coisa, em alguém lá dentro da casa. Olhei pro céu e disse “infinitas”. E como eu já tinha lido alguma coisa sobre astronomia eu já ia começar a dar uma aula pra ele. Quando somos jovens, sabemos de tudo né?! Mas fui interrompido a tempo, porque a voz dele tinha um som que não deixava nenhum silêncio ficar de pé. E qualquer pensamento evaporava. Então ele começou a falar sobre o infinito. Deu uma aula sobre velocidade da luz, nascimento das estrelas, me mostrou as “três marias”. Eu imaginei que poderia chegar nelas com uma escada.

Aí entrei no devaneio e a voz dele virou uma melodia doce como a brisa da noite enquanto eu subia pela escada até o céu. Quando eu estava lá em cima ele disse “o infinito é bonito”. Eu lembro de ter pensado “essa frase rimou”. A escada fez “plim” e virou fumaça, eu caí, passei pela luz do poste e num segundo estava nos braços daquele senhor. Ele me olhou dentro dos olhos e disse que o infinito era a soma das coisas finitas. E a vida tinha que ser vivida com essa beleza. Beleza, disse-me, significava ter família, ter trabalho e respeitar os mais velhos. De repente achei que ele estava lendo meus pensamentos por causa da filha dele. Eu estava com dezoito anos, já me achava independente, cheio de ideias na cabeça, mas ele tratou de aparafusá-las. Disse que eu seria um bom pai porque eu era um bom filho, mas nada de botar a carroça na frente dos bois. Ali eu tive certeza de que ele tinha sacado meus olhares pro shortinho azul da filha dele. De repente ele falou “você vai ser militar”. Que gentileza aquele homem fez à minha juventude e ao meu futuro. Hoje, depois de ter vivido feliz por 30 anos na Força Aérea Brasileira, tenho minha aposentadoria graças a ele.

Elson Campos (1936-1996)
Elson Campos (1936-1996)

Ele era mineiro, nascido em 1936. Hoje, 16 de abril de 2020, estaria fazendo 84 anos. No período de sua saúde frágil, eu ia visitá-lo em seu apartamento. Eu cresci jogando bola em frente à casa dele, via aquele homem com a farda do exército, ouvia aquela voz de trovão e aquela gargalhada que parecia um chafariz de alegria. Ele contava piadas e era o primeiro a dar a gargalhada. A gente ria duas vezes, pela piada e pela gargalhada dele. Aquele homem sabia contagiar qualquer pessoa. O contágio da alegria, da força, da determinação, o contágio da vida. O filho dele, Elson Campos Filho, meu amigo desde sempre, aprendeu muito bem como contagiar de alegria as pessoas, como incentivá-las, como ajudá-las e como transformar a vida das pessoas por onde ele passa. Depois a doença levou seu pai, meu mestre, uma estrela que sempre brilhará no meu céu.

Elson Campos e o Profeta Gentileza fizeram a passagem no mesmo ano, 1996.

Gentileza gera gentileza.

Muito obrigado, meu mestre Elson Campos, pela gentileza com o meu futuro.

Farlley Jorge Derze, na FAB.
Farlley Jorge Derze, na FAB, 1990.

10 respostas para “Gentileza gera gentileza”

  1. Que bela história, Farlley! Comecei a lê-la e, num breve e agradável instante, já estava eu procurando insistentemente por mais linhas que, lamentavelmente, não consegui encontrar em canto algum… Quanta gentileza, gratidão e nobreza! Fiquei leve.

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  2. Um texto tão belo 🥰 que nem consigo expressar com palavras 🙏🏼 Mas com lágrimas de gratidão por ter vc um amigo irmão tão especial 😘😘

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  3. Meu amado irmão !
    Não tenho palavras para expressar o sentimento de gratidão que tenho por ti. Sua trajetória foi de sucesso porque a humildade sempre esteve plantada em seu coração. O meu pai teve e tem até hoje no mundo espiritual muito orgulho de ti. Eu agradeço muito o trabalho que meu velho fez para que hoje nossa irmandade seja perfeita. Não nos cobramos nada. Somamos o tempo todo. Não estamos juntos no dia a dia, mas estamos colados e grudados sempre, pelos laços de amor fraternal.
    Obrigado pela homenagem ao Capitão !
    Obrigado por ser tão especial em nossas vidas.
    ❤️

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  4. Adoro histórias! E acho linda a história do Gentileza. Adorei saber que ele faz parte da sua memória. Obrigada por contar histórias de forma tão íntima e pessoal. Muito gostoso de ler.

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    • Muito obrigado, querida amiga. Hoje é 17 de abril. Aproveito para te desejar um feliz aniversário. Pessoa querida, pessoa iluminada, pessoa amiga, que dia lindo. Quantas frases eu precisaria escrever para descrever seu sorriso, seu trabalho, seus gestos, seus pensamentos, sua energia e sua luz? Este dia rima com quem te conhece, rima com nossa alegria, rima com a verdadeira existência!

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