— Boa noite cariocas, boa noite a quem nos ouve no fundo dos seus oceanos, boa noite ao pessoal misturado na poeira cósmica, boa noite notívagos, este é o podcast “Feminina Vox”.

(Os ouvintes escutam a vinheta, um trecho da música “O destino das horas”, de Farlley Derze. Após quinze segundos o volume diminui e a música fica no fundo).

— Você está no podcast número sete. Eu sou Carminha Orlandi. Conforme prometido lá no twitter, hoje temos a presença da Dra. Mia Félix.

(O volume da vinheta aumenta e diminui).

— Boa noite Dra. Mia!
— Boa noite. Muito obrigada pelo convite. Pode me chamar de Mia.
— Muito benvinda, Mia. Nossa convidada é bióloga e está aqui para um bate-papo sobre cultura, comportamento e envie suas perguntas no twitter @FemininaVox. Antes do programa começar estávamos conversando sobre o romantismo de um jantar à luz de velas.

(A locutora dá umas risadas no microfone e a música de fundo é substituída por sons de badaladas de sinos).

— Olha aí, Mia, os sinos tocaram. Vamos ter que continuar aquela conversa de bastidores ao vivo. Bóra?!
— Tudo bem, vamos lá.
— Pra quem não sabe, a Mia é doutora e pós-doutora em biologia. Vamos lá, Mia. Fale do jantar à luz de velas.
— Carminha, vamos lá. Todo mundo já viu a cena de um jantar à luz de velas nos filmes. De repente, numa noite qualquer um de nós vive essa situação romântica, psicologicamente falando. Mas vejamos a cena sob o ponto de vista biológico. O ambiente está escuro, iluminado apenas por velas. As pupilas vão dilatar-se para capturar melhor a imagem da outra pessoa. Aparentemente, como os lobos ou felinos durante uma caça noturna, os olhos do casal se concentram no outro. É muito diferente de quando a gente janta numa pizzaria ou faz um lanche num fast food com lâmpadas fluorescentes espalhadas no teto. Os olhos miram na mussarela derretida ou no milk shake. Outra característica de um jantar à luz de velas é a posição do casal. Estão frente-a-frente, muito próximos. Isso viabiliza uma conversa num tom de voz mais suave. Isso implica em se aproximar da outra pessoa, para ouvi-la melhor. O tom afetuoso na voz também nos passa a ideia de aconchego.

— Peraí, Mia, chegou uma pergunta aqui pelo twitter: “em relação à mulher, os homens caçam bem ou mal”?

— Caçam mal. Temos a visão, a audição, o olfato, o tato e o paladar, como os felinos e os lobos. Os homens convidam uma mulher para jantar. Depois do jantar vão para um lugar a sós, ele aponta o rifle e pôw: gasta a munição de uma vez. Nota zero.

(Carminha dá uma gargalhada. Faz algum comentário incompreensível misturado à risada. Mia continua).

— Esses caras desperdiçam munição à toa. Um bom caçador tem a visão apurada, usa a audição, aproxima-se para sentir o cheiro. Isso merece um tempo de dedicação. A natureza nos deu olhos, ouvidos e nariz, são cavidades expostas. Só depois vem a pegada e o paladar. Só depois vem unhas e dentes, e o sabor. Veja que a língua fica guardada, não fica exposta. A natureza é inteligente. Depois dos olhos, dos ouvidos, do nariz, a situação fica favorável. Braços, mãos, línguas, é a etapa seguinte. Tem que deixar a espingarda para o final, para o tiro de misericórdia.

(Carminha dá outra gargalhada).

— Mia, temos outra pergunta aqui pelo twitter: “você gosta de um jantar à luz de velas”?

— Eu adoro. Mas tenho consciência de que um jantar à luz de velas é um sofisma biológico, uma espécie de argumentação tácita da natureza feita intencionalmente pela inteligência com o intuito de persuadir a outra pessoa. Eu gosto muito desse jogo. Mas o placar não pode ser um a zero. Os homens querem ganhar de goleada e se esquecem que um jogo bom pode dar empate. Um jogo melhor ainda é quando a mulher ganha de dois a um. Eu sou uma vítima voluntária do prazer.

— Mia, você estudo os lobos, né? Bóra falar deles?
— Bóra.

(Os ouvintes ouvem uma gravação com uivos de lobos).

— Conta pra gente essa coisa de comportamento social dos lobos.
— Ok, vamos lá. Eu fui aluna de Lucyan David Mech, também conhecido como Dave Mech, um biólogo renomado do Estados Unidos e autor de livros. É a maior autoridade sobre lobos. Tempos atrás esteve na Ilha Royale onde viviam apenas trinta lobos. Nos anos 70 os Estados Unidos baixaram um ato de proteção legal dos lobos em todos os estados americanos, para evitar sua extinção. O único predador do lobo é o homem. O lobo gosta de presas grandes como cervos, alces, caribus, veados. Gostam de atacar em dupla ou em grupo de até seis membros. Mesmo se houver um grupo de 15 lobos, somente cinco ou seis deles realmente caçam de cada vez. Na verdade, um grupo é constituído geralmente por um casal, seus filhotes, um ou outro adulto adicional. Seus laços sociais são muito fortes como aqueles que unem um cão ao seu dono. O grupo sempre viaja, dorme e caça junto. Os lobos compartilham o alimento. Isso é raro em animais selvagens. Para compartilhar, regurgitam. Mesmo em primatas organizados, de onde evoluímos, a partilha não acontece, exceto em nossa própria espécie. Um lobo não toma o alimento do outro que já o possua. Sexualmente, amadurecem aos 22 meses, mas desde os 12 meses de idade já escolhem com quem se acasalar. Diferentemente dos humanos, e outras espécies, o laço sexual entre um casal de lobos não depende da disponibilidade sexual da fêmea. Aliás, a fêmea entra no cio apenas uma vez por ano. De um modo geral, um macho dominante e uma fêmea dominante formam um casal de procriação. A fêmea costuma tomar a iniciativa sexual. A dominância do grupo não vem da submissão por meio de lutas. Ela vem da capacidade para conduzir a viagem do grupo, ter um olhar concentrado e em situações mais extremas, mostrar os dentes, levantar as orelhas, franzir os olhos e emitir grunhidos ameaçadores. Isso determina a liderança. O grupo é territorialista e ocupa uma área aproximada de 100 quilômetros quadrados. Qualquer intruso é rechaçado com agressividade. Os limites territoriais são marcados pela urina. Os uivos também funcionam como demarcadores do território. Até onde o som alcança é território do grupo. Eu queria retomar aquela parte das presas, dos cervos, dos alces. Os lobos consomem tudo da presa. Devoram os pelos, o couro, os ossos.

— Mia, desculpa interromper. Tem uma pergunta aqui no twitter: “por que você estudou o comportamento social dos lobos”?

— Fui aluna do professor Dave Mech, em meu mestrado nos Estados Unidos. Ele havia publicado um livro chamado “The wolf”. Suas pesquisas continuavam. Um dia, ele perguntou quem gostaria de fazer parte de um grupo de pesquisa para viajar com ele para o Alasca e para o Canadá, onde a população de lobos estava mais preservada. Eu fui a primeira a levantar a mão. Durante as viagens o professor gostava de nos provocar, pedia que escolhêssemos uma espécie diferente para comparar com a sociedade dos lobos. Uns escolhiam a sociedade das vespas, outros das formigas, aranhas, pássaros e eu escolhi a espécie humana.
— uuÔpa, isso é fantástico, Mia.
— Meu livro “A biologia das escolhas” tem origem nessa comparação entre lobos e humanos. A fêmea do lobo tem a mesma importância, é respeitada, tem valor igual ao macho no grupo.
— Eu tô entendendo, Mia.
— O assunto é rico. A gente podia traçar um paralelo do comportamento social dos lobos com o flerte entre humanos num jantar à luz de velas. Eu vejo as mulheres indo a um jantar desses, mas esperam que toda a iniciativa seja do homem, inclusive a de pagar a conta. Antes do jantar, muitas mulheres se preparam, vão ao salão, unhas, cabelos, depilação, escolhem uma lingerie e, pasmem, depois do jantar vão para lugar para terem privacidade, o cara puxa a espingarda e gasta a munição dele antes mesmo de saber a cor do esmalte das unhas dela, não perguntou o nome do tecido da lingerie, não perguntou o nome do perfume e, além disso, puxou os cabelos dela numa fantasia dele, bagunçou tudo o que foi feito no salão em questão de segundos. O barco afunda e o cara não joga sequer uma boia para a mulher agarrar-se numa esperança de uma noite melhor.
— E como se resolve isso, Mia?
— Todos os homens tiveram uma mãe, certo? Muitas mães são responsáveis pelo machismo do filho. Um dia eu estava num salão e ouvi uma mulher falar com orgulho do filho adolescente que estava “mandando ver” nas moças do condomínio. A manicure dentuça que lixava o calcanhar da mulher sorria em tom de aplauso. Eu estava na cadeira ao lado e me meti na conversa. Eu perguntei “e se fosse sua filha adolescente “mandando ver” com os rapazes do condomínio, tudo bem”? A manicure engoliu os dentes e a tal mulher com as sobrancelhas trancadas respondeu que “jamais, isso seria um absurdo”. Ou seja, as mães fabricam os machinhos das próximas gerações e as dondocas do futuro. Claro que toda regra tem exceção. Infelizmente, a exceção é uma minoria invisível.
— E o que o Vaticano tem a ver com isso?
— Carminha, eu vejo muita gente brigando por causa de política, essa coisa de direita versus esquerda, liberdade versus opressão, botam a culpa num, botam a culpa noutro, e eu sempre digo a mesma coisa: “o pessoal mira no alvo errado”.
— Uhmmm, essa eu também não captei, Mia.
— Se no comportamento social dos lobos, macho e fêmea têm o mesmo valor, em qual coletividade humana a diferença entre homem e mulher é mais gritante?
— Peraí, Mia, enquanto você falava choveu um monte de perguntas aqui no twitter. Tem aqui uma pergunta do Carlos e ele já enviou mais de uma vez. Deixa eu dizer, daqui a pouco a gente lê algumas perguntas, a Mia responde já já. Continua, Mia. Você falava da diferença entre homem e mulher, não é isso?
— Isso. Antes de continuar preciso explicar a minha linha de raciocínio nessa questão, e tantas outras. Acontece que me preocupo, ou melhor, me interesso pela lei de Newton ação-reação, ou em outras palavras, numa lei da lógica, isto é, causa e consequência. E na lógica biológica, mulher e homem são diferentes sim. Basta olhar os dois corpos nus. Essa diferença externa é uma consequência de uma diferença interna. Em mulheres predominam alguns hormônios, em homens outros. Até agora não estou falando em termos psicológicos, mas biológicos. O problema é quando a a diferença entre mulheres e homens acontecem no campo psicológico artificial. Eu explico isso em detalhes no meu livro “A diferença artificial”. Em linhas gerais, eu ataco a diferença artificial entre mulheres e homens, e defendo a diferença natural entre ambos. Carminha, se você me convidar para outro programa no teu podcast, a gente dedica mais tempo a isso. Eu queria voltar no ponto do Vaticano.
— Ok, vamos lá. Aliás, já te convido a voltar. Depois a gente divulga a agenda lá no twitter.
— Obrigada. Então, eu fiz uma pergunta: se no comportamento social dos lobos, macho e fêmea têm o mesmo valor, em qual coletividade humana a diferença entre homem e mulher é mais gritante? Usei como resposta o Vaticano. Mas vejam bem. Pensem na palavra Vaticano como uma alegoria como aquela usada por Platão na alegoria da caverna.
— Mia, pega leve. Nem eu estou entendendo. Eu nunca li Platão.

(Carminha dá uma risada).

— Peço desculpas a vocês. Em linhas gerais a palavra alegoria vem do latim allegoria, que significa ato de falar sobre outra coisa. Pode-se usar como exemplo de alegoria diversos tipos de textos, como a metáfora, a sátira, o símbolo, a fábula, o apólogo, a prosopopeia, o oximoro, a ironia e o mito. Então, quando mencionei a palavra Vaticano eu estou falando de outra coisa.
— E que coisa é essa pelo amor de Deus, criatura?

(Carminha dá uma gargalhada extravagante. Mia sempre sorri em silêncio, com as sobrancelhas erguidas e a boca torta).

— O Vaticano foi criado em 11 de fevereiro de 1929. O papa Pio XI e o ditador Benito Mussolini assinaram o Tratado de Latrão que previa o Vaticano como um estado independente. A palavra Vaticano vem do latim “vaticinari”, isto “é, profetizar”. O local escolhido para sua fundação foi a colina “Mons Vaticanus”. Pensem na alegoria, isto é, numa colina como símbolo de uma conquista. Profetas e colinas, soldados que cravam bandeiras numa colina, astronautas que vão em colinas mais altas para cravar bandeiras de um país. Enfim, é a ideia de conquista, de superioridade. E muitas religiões seguiram essa linha de raciocínio para criar uma diferença artificial entre homens e mulheres, onde o homem vai à colina, o homem tem acesso ao conhecimento, mulheres não podem estudar, deuses são masculinos a partir de determinado ponto da história, e deusas de outros lugares e outros tempos são levadas ao exílio pela imaginação das autoridades autoproclamadas, como a deusa da sabedoria, Atena, na Grécia, a deusa Ísis do Egito Antigo que controlava as forças da natureza, a deusa xintoísta Amaterasu que iluminava o céu, a deusa hinduísta Kali cujos devotos eram recompensados com poderes paranormais e com uma morte sem sofrimentos, Hela a deusa nórdica do reino dos mortos, e a lista é enorme. Onde eu quero chegar? Basta a gente pensar que o processo civilizatório, muito bem explicado pelo alemão Norbert Elias, fez índios brasileiros aprenderem latim, fez línguas nativas desaparecerem juntamente com suas divindades, à medida que exércitos religiosos e militares invadiam territórios para cravarem suas bandeiras. Pensem também nas bandeiras como um símbolo de ideias. Inclusive a ideia de que a mulher tem menos valor que o homem no modelo de sociedade imposto pelo processo civilizatório, entre aspas por favor. Até hoje não há uma liderança feminina no Vaticano. Mas por favor, não pensem que o Vaticano está lá na Itália. Como eu disse, falo em termos alegóricos. O Vaticano está dentro de sua cabeça.
— Nossa, Mia. Hoje eu vou custar pra pegar no sono, viu.
— Carminha, eu fiquei curiosa com a pergunta daquele ouvinte, o Carlos. Eu anotei aqui o nome dele.
— Vamos à pergunta do Carlos: “Mia, você não gosta de um homem com uma pegada firme na hora H”?
— Posso responder ou tem mais perguntas?
— Pode responder.
— Ok. Carlos, eu gosto muito de uma pegada forte. Gosto muito. Mas eu escolho que vai botar seus dentes e suas mãos em mim.
— uuuÔpa (Carminha não se conteve, e bateu palmas).
— É o seguinte, Carlos. Não vai ser uma cara musculoso que fala o português errado, nem um cara sem cultura nenhuma, nem um cara cujo corpo humano se divide em olhos, mãos e pênis.

(Carminha explode numa gargalhada e se engasga, tosse misturada e o volume da trilha sonora aumenta. Cortaram o microfone da Carminha).

(A trilha sonora diminui e a voz rouca da Carminha reaparece).

— Desculpa, pessoal. Tive um probleminha aqui. Continua, Mia.

— Então… Aquela ideia que mencionei quando falei dos lobos, do jeito de caçar, do jantar à luz de velas, onde os olhos, os ouvidos, o nariz abrem o caminho para depois o tato e o sabor entrarem em cena, eu relaciono tudo isso à cultura geral do sujeito que vou escolher para me dar prazer. Alguém que nunca leu Flannery O’Connor ou Sherwood Anderson, está fora; alguém que nunca ouviu uma sinfonia de Mahler, está fora; alguém que está acostumado com as próprias ideias e fica tonto quando ouve uma frase de Nietzsche ou Simone de Beauvoir, está fora; alguém que não olha primeiro para as minhas unhas pintadas, está fora; e por aí vai, minha lista sempre me protegeu. Há homens maravilhosos. As mulheres não têm método para descobri-los.
— Mia, você é fantástica!
— Carminha, fantástica é a biologia. Eu aprendi muito. Trato os pensamentos como um ecossistema abstrato com consequências concretas. Nosso organismo faz muitas coisas pela sobrevivência. Nosso sistema imunológico cria anticorpos, a ciência cria vacinas e eu invento vícios para eu mesma usar, inclusive o vício de escolher muito bem como usar o meu tempo com alguém.

(Carminha solta uma gargalhada, mas se controla rápido).

— Mia, esse alguém tem que ser…
— Grande, Carminha. Grande significa grandeza de espírito, grandeza intelectual, grandeza solidária, e não as grandezas musculares que o tempo corrói em poucos anos, não as grandezas artificiais de impostores da fé, não as grandezas pseudo-intelectuais que confundem desejo com necessidade. Eu prefiro os homens grandes que sabem lidar com uma mulher grande. Um casal de lobos que partilha a refeição. E nesse caso da pergunta do Carlos, a refeição não é só o prazer intelectual, mas o prazer sexual também. Pra finalizar a resposta, eu adoro as minhas fantasias e as realizo muito bem acompanhada.

— Mia, me deu um calor aqui kkkkkkkkkkkk. Tem a pergunta da ouvinte Leticia#333: “o que você quis dizer com o pessoal faz a mira pro alvo errado”?
— Boa noite Letícia. Obrigado por sua pergunta. Eu quis dizer que não adianta gastar energia com as discussões sobre os culpados disso ou daquilo, na política, nos tribunais, no jornalismo, nem discussões sobre a diferença salarial entre homens e mulheres, sobre a sociedade ser machista num congresso lotado de homens, num judiciário lotado de homens. Basta olhar o Vaticano lotado de homens, olhar o que essa instituição simboliza desde a Idade Média e como esse Vaticano está dentro de sua cabeça na hora em que for ao salão fazer as unhas e se orgulhar dos feitos do filho adolescente e reprimir a filha.

— Eu tenho uma pergunta, Mia. Você leu muitos livros, conheceu muitos países e muitas culturas diferentes. Isso teve influência, isso é necessário para sairmos da caixinha, ou dá pra dar um passo na mudança de pensamento sem viajar pelo mundo?

— Uma vez uma aluna minha me perguntou por que eu lia tantos livros. Respondi que eu lia para me livrar de mim.
— Explica isso pelo amorrrr de Deus.
— Simples. Biologicamente a gente nasce com nossos ossos, nossos músculos, nossa pele, nossos cabelos, dentes, unhas, pálpebras, e nosso cérebro. Um cérebro sul-americano vai ganhar um tipo de programação, um software com antivírus e linhas de comando. Um cérebro da Sumatra continua sendo um cérebro com sua rede de neurônios submetida aos softwares de lá. Quando falo em software pensem na alegoria, o ato de falar sobre outra coisa. Esse software é a cultura. Eu cresci numa cultura como a de todos aqui, a cultura do terceiro mundo, a cultura dos fuxicos, da preocupação com a vida alheia, afinal, querem saber se alguém pegou um vírus estranho lá do outro mundo, o vírus Simone de Beauvoir, o vírus Aristóteles, o vírus David Hume, o vírus Bukowski, etc. Eu leio para me livrar de mim. Eu seria um vírus para mim mesma se não tomasse algumas vacinas disponíveis. Vírus se reproduziram rápidos desde a Idade Média.
— Temos a pergunta da Alanis. Ela quer saber se você poderia indicar um livro para ela.
— Alanis, vou deduzir que teu interesse imediato não são romances literários, aliás eu adoro e não abro mão. No momento estou lendo “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”, de Maya Angelou e “Eu estou pensando em acabar com tudo”, de Iain Reid. Se quer ler um livro para entender um pouco mais sobre esse software chamado cultura, recomendo o livro do psicólogo e linguista estadunidense Michael Tomasello, autor do livro “Origens culturais da aquisição do conhecimento humano”. Homens como ele têm preocupações que ajudam a explicar como funciona o aprendizado cultural e suas consequências numa sociedade. Num processo de colonização como a que fomos submetidos, mulheres foram impedidas de acessar livros ou outras formas de conhecimento. Quem insistia ficava mal falada e eram vistas como péssimo partido para casamentos. Se a mulher optasse pela caminho da arte, como Dercy Gonçalves, Chiquinha Gonzaga, Elza Soares, dentre outras, procure saber.
— Mia, você é feminista?
— Carminha, eu sou feminina. Olha minhas unhas, meu cabelo, meu batom e minhas ideias. Meu trabalho não visa a extinção da mulher ou do homem pelo exercício artificial. Defendo homens e defendo mulheres. Meu alvo, um deles pelo menos, é o impedimento artificial imposto à mulher. Isso merece ser explicado sem eufemismos nem truques de retórica de que a mulher mordeu a maçã e foi culpada pelo destino da humanidade. Olhem a urina machista que demarcou o território psicológico do Ocidente. Joana D’Arc foi queimada viva aos dezenove anos. Quantas mulheres deixaram de existir como existiram Leonardo da Vinci, Beethoven ou Thomas Mann? Quem, em nome de quem, as impediu? Outra coisa, machismo não é sinônimo de homens. Conheço muitas mulheres machistas.

(A música aumenta de volume, e diminui).

— Vocês estão no podcast “Feminina Vox”. Hoje com a Dra. Mia Félix. Eu sou Carminha Orlandi. O programa de hoje tá acabando. Nossa convidada vai responder as outras perguntas lá no twitter @FemininaVox. Como de costume, vamos encerrar o programa com um ping-pong de perguntas e respostas. Preparada Mia?
— Preparada.
— Então vamos lá.

(Os ouvintes escutam a trilha sonora do podcast, o volume sobe e depois abaixa).

— Uma música?!
— Jours d’amour, de Andreas Vollenweider.

— Um livro?!
— Quem de nós, de Mario Benedetti.

— Um prato?!
— Sushi.

— Uma atriz?!
— Frances McDormand.

— Um ator?!
— Tim Roth.

— Um filme?!
— O segredo dos seus olhos, dirigido por Juan José Campanella.

— Uma frase?!
— La réalité entrave nos illusions, do sociólogo francês Nicolas Thierry Delyon. Traduzindo, significa “A realidade atrapalha nossas ilusões”.

— Um sonho?!
— Tomar um café com Ricardo Darín, em Madri.

— Obrigada, Mia Félix, bióloga, 40 anos, autora de cinco livros, professora universitária, pesquisadora, você vai voltar aqui outro dia hein.
— Até breve, obrigada, foi um prazer, Carminha.

(Trilha sonora de encerramento do podcast).


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